A Depressão e a Mulher Selvagem

Quando menina de 5 anos tropeçou feio jogando futebol descalça e abriu de ponto a ponta o dedão do pé, só se via sangue e terra misturados enquanto ela gritava sem parar, pulando em um pé só feito saci.

 

Mesmo sufocado, o verde em nós resiste. Foto de Mari Araújo, primavera de 2017

 

Machucado limpo e nem esperou o curativo, já se pôs a correr.

E seguiu assim correndo e tropeçando pela vida. Provando todos os excessos e todas as ausências, sem nunca esperar a ferida anterior fechar. Ela precisava daquela mistura de terra com sangue outra vez, pois no fundo sabia que tudo começara ali, na primeira dor ignorada no cheiro da terra e no futebol. Mas cansada se enroscava em “nós” querendo entender

Chorava por dias para tirar o nó do peito.

Mas nenhum lágrima era suficiente, queria gritar bem alto, mas a preguiça era tanta que se contentava em chegar no horário ao trabalho.

Queria dormir o dia inteiro, mas se apegava ao fato de que crianças como seu filho, precisam comer a cada 3 horas e continuarão precisando até que possam cozinhar sozinhas e cozinhar, já era um privilégio.

Seu orgulho gritando

Resolveu pedir a demissão por que ela não era mais tão produtiva depois que havia conhecido aquela tal vontade de nunca sair do chão do banheiro. Na sequência o novo emprego e a separação; que foi devidamente esterilizada com litros infinitos de álcool e o bom e velho rock & roll. Muito yoga e respiração, mas a velha vontade de chorar as vezes espreitava enquanto a garota sorria fingindo que não, afinal as vezes, nem entendia o porquê.

Outro novo emprego.

Um novo amor, que se tornou antigo, um novo ciclo lindo … e ops, desistiu de outro emprego.

Férias

Mergulhou na endorfina, escalada, stand up, caminhada. .

Outra gerência, novidade de vida … mas, por dentro, ela gritava e pulava como saci, sentindo-se amputada, acimentada, sufocada … e assim fugiu daquele dia …

Chegando em casa largou a bolsa no chão do apartamento e se jogou em baixo das cobertas.

A noite era longa.

Sintia uma saudade inconsciente do cheiro de terra e selvagem, se escondeu na floresta interior, para assistir acolhida, a vida desmoronar.

Em sonho, abraçou o rio e chorou com toda a sua alma. Conversava com a sereia Yara e ouvia a voz de jurema vinda das arvores que estavam no sul … ela sonhava e teimosa que era, mesmo  em sonho pergunta para as folhas e os pássaros o porque “ela não conseguia apenas se contentar” !!!!!

Foi neste momento que um falcão a levantou no ar

Ela era o falcão e com um bater de asas virou tigre dourado e negro em meio a sua sala de estar.

Engoliu o cartão bancário, destruiu a pilha de revistas consideradas “conteúdo obrigatório para ter assunto”, mordeu seu ex gerente assediador, arrancou o esmalte da moda das novas garras felinas e depois de um rugido correu até o mar e mergulhou.

Ao emergir já era mulher outra vez e acordou atordoada, escorregando para fora do edredom e caiu no chuveiro.

 

Sabia que agora era hora de se reinventar

Aquela dor imensa era apenas seu corpo e sua alma pedindo para ela desacelerar pois só assim aquelas feridas iriam curar. Mas como é difícil para alguém sem recursos decidir parar. Levou anos tentando respirar e aos poucos já conseguia até trabalhar, viajava todo final de semana para que seu eu selvagem se reveza-se entre a natureza e a cidade.

E os 5 dias uteis

Eram repletos de falsidades, e pouco a pouco 5 dias era muita coisa para ela suportar.

Seu espirito não conseguia ficar calado diante de tudo que o sistema nos faz vivenciar, caiu de novo no buraco do sufocamento e desta vez não tinha outra alternativa, pois quem chamava era a natureza escondida atrás de uma tal emoção que decidiram apelidar como depressão.

A dor não era só dela, a terra e todos os seres precisavam como ela, re-aprender a se curar.  E agora tateando o novo, desvenda por onde re-começar.

 

Mari Araújo – Novembro de 2013

Projeto Trans-Crê-Ver

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